quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Entrevista com Dermeval Saviani sobre o PDE.

PDE só acontece com colaboração de gestores



 

Dermeval Saviani, professor da Unicamp, diz que plano do governo precisa da adesão dos gestores.


Se fosse um aluno, o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), política educacional do atual governo, estaria ainda nos primeiros anos de escolaridade. Lançado em 2007 pelo Ministério da Educação (MEC) como um conjunto de metas e ações, o PDE vem ganhando corpo e ampliando suas atividades com a adesão maciça de estados e municípios. Seu objetivo é ambicioso: elevar o nível da Educação brasileira aos patamares dos países desenvolvidos. O prazo vai até 2022. Para medir essa evolução, foi criado o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), que afere o desempenho de escolas, municípios, estados e do país e define a política de investimento de recursos na Educação. Conforme avança, o PDE recebe análises mais aprofundadas. Uma delas foi feita por Dermeval Saviani, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e especialista em história da Educação. Ele acaba de lançar o livro PDE: Análise Crítica da Política do MEC, no qual discute as virtudes, os problemas e os desafios do plano. "O PDE é a primeira política pública educacional a encarar a questão da qualidade do ensino como prioridade. Mas ele é só o primeiro passo", afirma. Nesta entrevista, ele fala da importância do trabalho dos gestores para que as metas sejam atendidas.

É novidade o Brasil ter um plano que pense no desenvolvimento e na qualidade da Educação?
DERMEVAL SAVIANI
A Educação Básica nunca foi objeto de planos nacionais quando estava sob a responsabilidade das províncias, durante o Império (1822-1889), e depois dos estados, na Primeira República (1889-1930). O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, em 1932, foi um dos primeiros movimentos a chamar a atenção para a necessidade de planejar a Educação e organizá-la em todo o território. A Constituição de 1934 criou o primeiro Conselho Nacional de Educação e determinou que se formulasse um plano nacional, elaborado em 1937 durante a gestão do ministro Gustavo Capanema. O documento até era bem detalhado, mas, com o golpe do Estado Novo, que aconteceu naquele mesmo ano, ele não chegou a ser implantado. A ideia só foi retomada com a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que deu entrada no Congresso Nacional em outubro de 1948 e tramitou por 13 anos, mas nela a preocupação era mais econômica, de distribuição de recursos.

Nenhum documento se preocupava com a qualidade do ensino?
SAVIANI
Temos na história da Educação visões diferentes do que deveria ser um plano nacional. O primeiro tinha uma orientação moderna e renovadora, mas não foi implantado. Durante o Estado Novo, regras autoritárias serviram mais como controle ideológico-político, o que se repetiu durante a ditadura. E a preocupação da primeira LDB se restringia apenas ao financiamento.

Como o PDE se insere nesse processo histórico?
SAVIANI
A LDB de 1996, seguindo uma determinação da Constituição de 1988, estipulou um ano para a elaboração de um plano nacional, concebido com a junção de duas propostas: uma do governo federal e a outra de um grupo de educadores. Os dois textos foram unificados e o Plano Nacional de Educação (PNE) foi convertido em lei em 2001, com vigência até janeiro de 2011. Já o PDE, lançado em 2007, não é um plano e não substitui o PNE. Ele é uma política pública, um conjunto de medidas e metas para o país, estabelecido por decreto. É, portanto, um ato do poder executivo, não uma lei, e está mais ligado ao Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), que envolve ações em diferentes áreas da economia para impulsionar o crescimento econômico do país. Como o PAC previa que cada ministério deveria ter um plano de atuação, o MEC reuniu um conjunto de ações que já desenvolvia, acrescentou algumas novas e assim nasceu o PDE.

O PDE propõe ações eficientes para a Educação ter qualidade?
SAVIANI O grande ponto positivo do PDE é justamente ele se dispor a combater o ensino ruim que a Educação Básica oferece. A partir da década de 1990, tivemos avanços na questão quantitativa. Porém não basta garantir o ingresso. É preciso também assegurar a conclusão. Até 2007, as políticas desenhadas para garantir a permanência das crianças deixaram a desejar do ponto de vista pedagógico, pois se preocupavam apenas em aumentar o número de alunos que chegavam ao 9º ano (8a série), sem garantir a aprendizagem.

O que mudou com o Plano de Desenvolvimento da Educação?
SAVIANI
O PDE atrelou a permanência na escola à qualidade do ensino e para isso instituiu o Ideb. Ele é uma composição do resultado dos alunos em avaliações nacionais, como a Prova Brasil e o Sistema de Avaliação do Ensino Básico (Saeb), com as taxas de aprovação e evasão de cada escola. Assim, ele não ficou apenas como um número nacional, mas está conseguindo refletir a realidade das unidades de ensino. Isso permite identificar os pontos de estrangulamento e tomar medidas para saná-los. E o MEC tem feito isso, atuando nos municípios prioritários (aqueles com pior desempenho no Ideb), reforçando neles o apoio técnico e financeiro que a Constituição determina que a União preste aos entes federativos.

Depois de dois anos, já é possível dizer que o PDE "pegou"?
SAVIANI Apesar de as metas do PDE serem nacionais e de caráter geral, elas só têm expressão no trabalho efetivo que cada escola realiza. Vivemos em um contexto federativo, ou seja, fora de um sistema nacional. Por isso, é imprescindível a adesão de estados, municípios e escolas. Se os gestores não traduzirem os propósitos e as metas do PDE para as condições específicas de cada unidade, jamais os objetivos serão atingidos. É claro que as dificuldades históricas da nossa Educação, como a infraestrutura, a dupla jornada dos docentes e tantas outras, limitam a ação de diretores, coordenadores e orientadores. Mas há aspectos que dependem diretamente da própria gestão da escola. Um deles é essencial: ter clareza sobre o sentido da Educação escolar para distinguir o que é imprescindível para o trabalho pedagógico do que é secundário. Sem isso, toda a ação da escola se dilui. Se tudo for importante, se tudo for currículo, a tendência é todas as ações da escola terem o mesmo peso. Assim, se abrem as portas para o espontaneísmo, o que inviabiliza o alcance de metas.

O que é imprescindível para o trabalho pedagógico?
SAVIANI O principal é viabilizar o acesso à cultura letrada. O saber espontâneo não depende da escola. Não precisamos dela para aprender a falar, andar e brincar. Mas é necessária toda uma estrutura para aprender a ler e a escrever, já que a escrita não é uma linguagem espontânea. Ela é codificada e precisa de processos formais de aquisição. A escola foi criada com esse papel e até hoje, apesar das críticas, não se descobriu um mecanismo melhor. Os gestores precisam ter consciência de que a aquisição desse conhecimento demanda tempo e uma ação pedagógica contínua e planejada.

No cotidiano do gestor, como as ações podem traduzir a preocupação com o pedagógico?
SAVIANI
As questões do dia a dia têm de ser trabalhadas constantemente para que as metas do PDE sejam atingidas. Por exemplo, antes de programar uma excursão, há de se perguntar: quantas horas de aula a atividade vai tomar? Ela compete com os objetivos da escola ou contribui para que eles sejam atingidos? Naquela oportunidade, o aluno vai desenvolver e aprofundar conhecimentos que as aulas propiciaram? Os gestores - ao organizar e dar forma à escola - devem estar atentos a esse enfoque principal da aprendizagem, de tal modo que aquilo que favorece o alcance das metas deve ser incentivado e promovido, e o que entra em conflito, evitado. Quando um diretor acha que a principal função da escola é "que as crianças interajam" ou um orientador educacional fala que para ele "não importa se a criança está aprendendo porque isso deve ser uma preocupação dos professores", por exemplo, o sentido principal do trabalho pedagógico e da própria existência da equipe de gestão já se perdeu e as dificuldades vão aparecer.

Já é possível observar ganhos trazidos pelo PDE para a Educação do país?
SAVIANI
Ainda é cedo para avaliar resultados, mas penso que para avançar no ritmo desejado é necessário mais do que o PDE prevê. O MEC se propôs a dar suporte técnico, encaminhando consultores aos estados e municípios para ajudar a definir o Plano de Ações Articuladas (PAR), que seria o PDE local. Por meio dele, os gestores identificaram as prioridades para a Educação da sua cidade e estado e escolheram os programas apoiados pelo MEC que querem implantar. Isso não é suficiente. Primeiro, porque os consultores enviados, em geral, desconhecem a realidade dos locais que visitam e têm limitações de formação pedagógica. Em segundo, muitas escolas operam em condições tão precárias que, por melhores que sejam as orientações que recebam, não vão conseguir se enquadrar no plano. Seria necessário, antes de tudo, investir substancialmente naqueles pontos que historicamente são deficientes, como a infraestrutura e a formação de professores que atendam às necessidades locais.

Em 2010, teremos eleições. Há garantias de permanência do PDE?
SAVIANI
Em abril de 2010, teremos a Conferência Nacional de Educação. Ela será decisiva para estabelecer mecanismos que não sejam facilmente desmontáveis com a mudança no governo. Mesmo se o presidente Lula fizer o sucessor, pode haver rupturas. Política é sempre uma correlação de forças que depende da situação. O plano em si se baseia em alguns aspectos da Educação que são consensuais e também por isso os estados e municípios aderiram. O problema é o conteúdo com o qual você recheia a ossatura do PDE.

Com a conclusão do plano em 2022, a Educação brasileira estará melhor?
SAVIANI O PDE não garante isso. Para que a qualidade da Educação seja assegurada, essa área deveria ser tratada como uma questão de Estado e não de governo. Precisamos de uma estrutura com relativa autonomia e bastante distanciada daquilo que eu chamo de política miúda, que envolve os embates entre partidos. Essa estrutura envolveria um Conselho Nacional de Educação que não fosse meramente homologatório, mas deliberativo e autônomo em relação ao Executivo. Ele deveria funcionar quase como um órgão judiciário para normatizar e fiscalizar a Educação.

Como deveria funcionar um órgão regulador da Educação?
SAVIANI Seria um espaço para que a sociedade civil avaliasse as políticas educacionais e propusesse alterações de rumo, a exemplo do que sugeria a primeira LDB, na década de 1960, que previa a criação de um Fórum Nacional de Educação nesses moldes. Enquanto a Educação ficar sujeita às disputas políticas, vão acontecer discrepâncias, como o Governo Federal ter um indicador de qualidade, o Ideb, e São Paulo criar o Índice de Desenvolvimento da Educação do Estado de São Paulo (Idesp). É uma concorrência que não favorece o desenvolvimento da Educação. A descontinuidade da política educacional é uma realidade histórica no Brasil. A receita para solucionar isso é composta de três ingredientes: a Educação ser tratada como questão de Estado, a criação de um sistema nacional que garanta o mesmo padrão de qualidade para todas as escolas e um plano nacional que fixe, com clareza, as metas e os recursos necessários.

Em que pontos o PDE ainda precisa avançar?
SAVIANI Há duas questões conceituais. A primeira é que, inevitavelmente, o índice se expressa de forma numérica, o que traz certa confusão na interpretação e na divulgação. É preciso ter atenção na hora de compreendê-lo e introduzi-lo nas redes e escolas. Os gestores têm de entender e saber demonstrar as ações que levaram a sua escola a ter um aumento na nota do Ideb. O crescimento de 3,8 para 4,2, por exemplo, reflete a melhora da qualidade da aprendizagem por que motivo? O que foi feito? O projeto político pedagógico estava consistente? A segunda questão está nas provas usadas no cálculo do Ideb. Os exames nacionais desconsideram as especificidades da aprendizagem em diferentes locais. Com isso, é possível questionar até que ponto eles de fato medem a qualidade. Há ainda outra questão: o PDE tem tantas ações que elas se justapõem e o foco na qualidade se perde pela dispersão de atenções e recursos. Não há como atender à informatização das escolas, ao transporte e à expansão do Ensino Superior e das escolas técnicas simultaneamente com o mesmo grau de investimento e qualidade.


Fonte: Revista Nova Escola Gestão Escolar

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